A capacidade de ver
José Saramago, em seu “Ensaio sobre a cegueira” retira do Livro dos Conselhos a epígrafe1:
“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.
E nos faz mergulhar numa história fantástica na qual uma misteriosa epidemia de cegueira branca acomete as pessoas de um país e, à medida que cada vez mais pessoas não podem ver o mundo, preocupadas consigo mesmas e sua sobrevivência individual, destroem-se as bases da organização social vigente e se instala um estado de coisas em que domina o espírito do “salve-se-quem-puder”, a “lei do mais forte”, o individualismo, a ganância, o colapso de valores humanistas. O resultado é uma sociedade caótica, destrutiva e suicida. Os personagens que conseguem manter princípios éticos e ações solidárias, sustentando uma organização coletiva baseada no respeito e cooperação, são os que escapam de ser tragados pela violência de uma multidão cega, potencialmente assassina, que percebe os outros como inimigos.
O autor tece uma analogia entre a perda da visão e a progressiva perda da humanidade decorrente do egoísmo de quem não consegue enxergar o mundo como um lugar a ser compartilhado por todos, mas um lugar hostil que se presta a prover necessidades particulares.
Qualquer semelhança com situações das sociedades contemporâneas certamente não é mera coincidência. Saramago escreveu esse romance com clara intenção de fazer uma contundente crítica à dissolução de valores éticos e alertar sobre a decadência humana e social que acomete a sociedade quando esses valores entram em crise.
Por isso, a epígrafe nos precipita à responsabilidade: se podemos ver o que está acontecendo, devemos buscar a reparação. Ver, conhecer, refletir sobre si mesmo, os outros e as situações que nos envolvem em contexto particular e coletivo. É o princípio da ética, da cidadania, da humanização.
Princípio que emerge da concepção de homem comum no lugar social e tempo histórico da modernidade. Podemos dizer que a noção de cidadania que temos hoje (um sistema de direitos e deveres que se aplicam a todos os membros de uma sociedade) é uma evolução cujo ponto de partida foram as modificações econômicas, políticas e sociais que se iniciaram a partir do século XVI.
Nas sociedades capitalistas, o homem comum é chamado de cidadão e ocupa um lugar estratégico na sua constituição, dinâmica e sobrevivência, e as instituições surgem como dispositivos de ação para a organização da sociedade e manutenção da ordem. Nesse contexto, a vida como valor máximo do ser humano passa a ter uma importância particular, quando a esse valor supostamente natural agregam-se outros que permitem o uso das práticas de saúde como estratégia de ação sobre a população para, através da promoção da saúde e da reprodução, manter-se a vida, a saúde da força de trabalho e na contemporaneidade, o consumo.
Entretanto, nessa configuração da sociedade em que todos são ditos cidadãos – teoricamente com direitos iguais (inclusive de acesso a bens), mas que na lógica capitalista não estão ao alcance de todos – não se mantém a ordem das coisas sem que opere a violência, nos seus mais diversos matizes.
Na nossa sociedade, a violência se revela estrutural ante a desigualdade social e a incapacidade do Estado de suprir as necessidades de toda população, criando um contingente de excluídos que não tem meios para exercer seus direitos e deveres cidadãos. A exclusão social não é só uma questão de pobreza, mas principalmente de ausência de poder público e sua substituição por um poder paralelo, marginal e violento cujas regras não respeitam as leis do coletivo, porque nesses espaços de não-governo instauram-se domínios que governam com regras particulares.
O território da cegueira branca...
Nas instituições, a violência decorre da cultura geral de violência de que falávamos e da organização visando a manutenção da ordem que consolida lugares de poder e controle dos sujeitos.
Sobre a instituição devemos lembrar que ela é condição básica do desenvolvimento humano. Produto das interações humanas. Nascemos numa família, crescemos construindo nossa identidade nos grupos que participamos, seja a escola, a religião, o trabalho, a tribo. Portanto, sempre estaremos ligados uns aos outros em graus variáveis. A questão, portanto, não é crucificar a instituição, mas perceber suas várias finalidades, pensá-las e transformá-las a partir de valores éticos revigorados.
A violência institucional na área da Saúde decorre de relações sociais marcadas pela sujeição dos indivíduos. Data na transformação do hospital antigo no hospital moderno sob os então “novos” métodos organizacionais. Historicamente, foi se configurando desde o controle, a alienação e o não reconhecimento das subjetividades envolvidas nas práticas assistenciais. Na vertente da organização científica do trabalho criaram-se as castas dos que pensam e dos que obedecem, levando-se ao estado de alienação do sujeito em relação ao seu trabalho, à instituição e ao contexto social em que se inscreve a sua prática que não só torna seu trabalho mecânico e sem sentido como potencialmente violento, porque perde qualidades fundamentais para o contato técnico e sensível necessário às relações intersubjetivas na Saúde.
O assim chamado institucionalismo11 resulta dessa forma de violência e faz com que a instituição de saúde passe a provocar doença ao invés do cuidado e da cura.
Nesse sentido, a humanização na Saúde (contra a violência institucional) chama à reflexão sobre em que se apoiam nossos saberes e práticas e quanto somos carregados por determinações sociais que imprimem interesses na nossa atividade.
A humanização como reação à violência institucional na Saúde busca recuperar o lugar das várias dimensões discursivas dos sujeitos que atuam ou recorrem às instituições de saúde, desconstruindo relações de dominação-submissão e dando lugar à construção de saberes compartilhados e o desenvolvimento dos potenciais de inteligência coletiva definidos por Levy como “a valorização, a utilização otimizada e a colocação em sinergia das competências, imaginações e energias intelectuais, independentemente de sua diversidade qualitativa e de sua localização” (Levy, 1993, p.36), que se traduz na comunicação, no debate e na divulgação das idéias para a construção de projetos e ações coletivas em sinergia com princípios, missão e visão institucional coletivamente construídos.
Cabe novamente perguntar: qual é o nosso papel como agentes de Saúde nessa sociedade?
O bom cuidado da saúde é um direito humano e quando podemos exercer nossas atividades profissionais decentemente estamos exercendo nossos direitos de cidadão, caso contrário estamos no meio da encenação de uma farsa, cegos ou não.
Para finalizar, gostaria de lembrar a crônica de Carlos Drummond de Andrade,16 nos dizendo da fixação humana pelo verbo matar, que desliza seu desejo homicida nos vértices de inocentes expressões lingüísticas cotidianas com as quais vivemos matando o tempo, matando a fome. Matamos aula, matamos charadas. Nosso dedo polegar é o mata piolhos. E termina brincando e nos chamando a refletir que: “Se a linguagem espelha o homem, e se o homem adorna a linguagem com tais subpensamentos de matar, não admira que os atos de banditismo, a explosão intencional de aviões, o fuzilamento de reféns, o bombardeio aéreo de alvos residenciais, as bombas e a variada tragédia dos dias modernos se revele como afirmação cotidiana do lado perverso do ser humano. Admira é que existam a pesquisa de antibióticos, Cruz Vermelha Internacional, Mozart, o amor.” (1993, p.67.)
Não sei por quê... Mas acredito no poeta!
REFERÊNCIA: RIOS Izabel Cristina. Caminhos da humanização na saúde: prática e reflexão. Áurea Editora, São Paulo, 2009.